sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Histórias da minha vida - 2

Em homenagem ao meu melhor amigo, camarada de armas e Herói de Portugal, o Cdte. Guilherme Almôr de Alpoím Calvão, que já partiu, transcrevo parte de um conto de guerra sobre uma situação real do seu livro Contos de Guerra.
"O comandante sentiu o flanco esquerdo completamente desguarnecido e o inimigo, que recebia reforços e cujos efectivos se elevavam a mais de cem homens, esgueirava-se em grupos cada vez mais numerosos para o local que acertadamente considerava como o ponto fraco.
As forças que lhe restavam, resumiam-se à sua ordenança e ao telegrafista, não contando com um oficial, cujos galões e funções não o obrigavam a estar ali mas que  viera para ver.
Abriram fogo certeiro sobre os grupos. Surpreendidos e dizimados, estes recuaram precipitadamente e reponderam com saraivadas sucessivas de balas. Os alvejados viram-se obrigados a verdadeiros prodígios de acrobacia para lhes escapar.
Contra vontade, o comandante solicitou reforços da base avançada. Passado algum tempo viu-se a esguia figura do imediato à frente da secção do cabo Fonseca, penetrar na mata, em envolvimento pela esquerda e depois de violenta acção sobre os elementos inimigos ali colocados, fazer junção com o comando.
O adversário recuou. Ouviram-se uma série de vozes de comando em português e mais uma vez avançou, concentrando esforços no centro, em tentativa de rotura. A secção de vante, vacilou ligeiramente e o comandante fê-la recuar, para uma posição em que a ligação com as restantes forças, fosse mais eficiente. O movimentou executou-se com o brilho habitual, mas um homem fulminado por várias balas, cai com o crânio esfacelado, entre as duas linhas de fogo!
Gritos de alegria intensa assinalaram a morte e sombras furtivas rastejavam para junto do cadáver, protegidas por uma chuva de metralha que varria a posição, em ritmo intensíssimo.
O comandante sentia um nó na garganta. Ali, à frente dos seus olhos estava o inimigo, na iminência de se apoderar de um dos seus homens. Apoiou-se a uma árvore, pesando o dilema: arriscar mais vidas para tentar recuperar o corpo ou ver mãos ávidas arrastarem-no aos poucos para as densas sobras da mata, onde serviria depois de troféu de propaganda? Subitamente viu alguns homens destacarem-se do perímetro defensivo. Distinguiu perfeitamente as largas espáduas do sargento André, a achaboucada figura do Fonseca, o Botelho, o Dias da Rosa, o ágil perfil de lobo do Piedade Grumete e outros mais. Símbolos da mais pura camaradagem e da mais viril fraternidade - a das armas. Espelhos de valentia impossível, resumos gloriosos do que há de mais belo e mais profundo na alma humana.
Avançaram resolutos, pelo limiar da eternidade em direcção ao camarada morto. Alcançaram-no esmagando as sombras que o queriam levar. Regressaram às linhas. Aos ombros, em vez de um, traziam dois cadáveres: a dádiva generosa do Botelho fora total."

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